Pai do rock and roll quebrou barreiras musicais e estéticas de gênero. Uma brilhante análise de David Browne, da Rolling Stone EUA – publicado em 09/05/2020.
De Beatles a Elton John: todos queriam ser como Little Richard
Little Richard, um dos fundadores do rock, cujos gritos fervorosos, roupas extravagantes e persona alegre e desafiadora de gênero incorporava o espírito e sonoridade daquela nova forma de arte, morreu neste sábado, 9. Tinha 87 anos. O filho do músico, Danny Jones Penniman, confirmou a morte do pioneiro do rock à Rolling Stone EUA, mas a causa da morte é desconhecida.
Começando com “Tutti Frutti”, em 1956, Little Richard teve uma série de sucessos irrefreáveis – “Long Tall Sally” e “Rip It Up” naquele mesmo ano, “Lucille” em 1957, e “Good Golly Miss Molly” em 1958 – guiadas pelo piano simples e vibrante, exclamações vocais influenciadas pela música gospel e letras carregadas de sexualidade (muitas vezes sem sentido). “Ouvi Little Richard e Jerry Lee Lewis, e aquilo era tudo”, contou Elton John à Rolling Stone EUA, em 1973. “Eu não queria mais ser outra coisa. Sou mais um do estilo Little Richard que um Jerry Lee Lewis, acho. Jerry Lee é um pianista muito intrincado e muito habilidoso, mas Little Richard tem mais peso.”
Apesar de nunca ter chegado ao top 10 novamente depois de 1958, a influência de Little Richard foi massiva. The Beatles gravou diversas músicas dele, incluindo “Long Tall Sally”, e os vocais de Paul McCartney nessas músicas – e em “I’m Down”, dos próprios Beatles – é um tributo ao estilo da garganta desfiada de Little Richard. As músicas de Richard se tornaram partes canônicas do rock and roll, com covers de todos desde Everly Brothers, The Kinks e Creedence Clearwater Revival a Scorpions. “Elvis popularizou (o rock)”, Steven Van Zandt postou após a notícia. “Chuck Berry era o narrador. Richard era o arquétipo.”
A persona de Little Richard no palco – o topete pompadour, maquiagem andrógina e camisas com pingentes de vidro – também definiu o padrão para o espetáculo do rock. “Prince é o Little Richard da geração”, Richard disse à Joan Rivers, em 1989, antes de olhar para a câmera e se dirigir a Prince. “Eu usava roxo antes de você!”
Nascido Richard Wayne Penniman, em 05 de dezembro de 1932, em Macon, Georgia, era uma entre 12 crianças, e cresceu com tios pastores. “Eu nasci na periferia. Meu pai vendia uísque, uísque pirata”, contou à Rolling Stone EUA, em 1970. Apesar de cantar em uma ignreja próxima, o pai, Bud, não apoiava a música do filho e o acusava de ser gay, resultando na saída de Penniman de casa aos 13 anos, para morar com uma família branca em Macon. Mas a música o seguiu: um dos amigos dos tempos de menino era Otis Redding, e Penniman escutou R&B, blues e country enquanto trabalhava em um estande concedido no auditório da cidade.
Depois de se apresentar no Tick Tock Club, em Macon, e vencer um show de talentos local, Penniman fechou o primeiro contrato, com a RCA, em 1951. (Ele se tornou “Little Richard” quando tinha cerca de 15 anos, quando os mundos do R&B e blues estavam cheios de atos como Little Esther e Little Milton; e também estava cansado de ouvir a pronúncia errada do último nome como “Penny-man”). Aprendeu o estilo distintivo no piano de Esquerita, uma cantora e pianista da Carolina do Sul que também usava um topete pompadour alto.
Nos cinco anos seguintes, o avanço da carreira de Little Richard foi apenas adequado; razoavelmente manso, os singles convencionais gravados para RCA e outras gravadoras não chegaram nas paradas. “Quando comecei, nunca ouvi nenhum rock and roll”, contou à Rolling Stone EUA em 1990. “Quando comecei a cantar [rock and roll], cantei por muito tempo antes de apresentar ao público porque tinha receio de que não gostariam. Eu nunca escutei ninguém fazer isso, e estava assustado.”
Em 1956, Richard lavava louças na estação de ônibus da Greyhound, em Macon (um emprego de alguns anos antes, depois que o pai foi assassinado e Richard Wayne Penniman precisou sustentar a família). Na época, apenas uma música, “Little Richard’s Boogie”, deu sinais do tornado a caminho. “Coloquei aquela coisa pequena”, contou à Rolling Stone EUA, em 1970, sobre a presença das raízes gospel. “Sempre tive isso, mas eu não sabia o que fazer com o que tinha.”
Durante a decaída, enviou uma gravação com versões sem edição de uma novidade obscena chamada “Tutti Frutti” para Specialty Records, em Chicago. Ele criou o famoso refrão da música – “a wop bob alu bob a wop bam boom” – enquanto lavava louças. (Richard também escreveu “Long Tall Sally” e “Good Golly Miss Molly” no mesmo emprego.)
Por coincidência, Art Rupe, dono da gravadora e produtor, buscava um vocalista para algumas músicas para gravar em Nova Orleans, e a entrega uivante de Penniman se encaixava. Em setembro de 1955, o músico gravou uma versão de “Tutti Frutti” com letra higienizada, que se tornou o primeiro sucesso, alcançando a posição 17 na parada de pop. “‘Tutti Frutti’ realmente começou a unir as raças”, comentou, em 1990, para Rolling Stone EUA. “Desde o início, minha música foi aceita pelos brancos.”
A sequência, “Long Tall Sally”, chegou ao número 6, e se tornou o sucesso melhor posicionado da carreira. De “Long Tall Sally” a “Slippin’ and Slidin”, os sucessos de Little Richard – uma mistura gloriosa de boogie, gospel, e jump blues, produzido por Robert “Bumps” Blackwell – soava como se ele nunca ficasse parado. Com o pompadour característico e maquiagem (que começou a usar para parecer menos ‘ameaçador” ao tocar em clubes de brancos), Richard ficou instantaneamente no nível de Elvis Presley, Jerry Lee Lewis e outros ícones do começo do rock, completa com fãs raivosos e shows lotados. “Era com isso que jovens na América estavam animados”, disse à Rolling Stone em 1970. “Não querem uma farsa, querem a verdade.”
Assim como Presley, Lewis e outros contemporâneos, Penniman também participou dos primeiros filmes de rock, como Música Alucinante (1956) e Sabes o que Quero (1957). Em demonstração de como a indústria da música e rádio era segregada, na época, os covers tímidos de Pat Boone de “Tutti Frutti” e “Long Tall Sally” tiveram desempenho tão bom ou melhor quanto as versões do próprio Richard. (“Tutti Frutti” de Boone chegou ao décimo segundo lugar, superando Little Richard por nove posições). Mais tarde, Penniman contou à Rolling Stone que fez questão de cantar “Long Tall Sally” para garantir que Boone não conseguiria copiar tanto.
Então os sucessos pararam, por escolha própria. Depois do que interpretava como sinais – a máquina de um avião que pareceu pegar fogo e um sonho sobre o fim do mundo e a danação -, Penniman desistiu da música em 1957, e começou a frequentar a Oakwood University, na escola de Alabama Bible, onde foi ordenado como ministro. Quando finalmente lançou um novo álbum, em 1959, o resultado foi uma seleção gospel chamada God Is Real.
Com o fracasso na carreira gospel, Little Richard retornou ao rock secular em 1964. Apesar de nenhum dos álbuns e singles lançados na década seguinte em diversas gravadoras ter vendido bem, foi bem recebido de volta por uma nova geração de roqueiros, como The Rolling Stones e Bob Dylan (que tocava as músicas de Little Richard no piano quando era criança). Quando Little Richard tocou no Star-Club, em Hamburgo, no começo dos anos 1960, o ato de abertura era ninguém menos que os Beatles. “Costumávamos ficar nos bastidores para assistir Little Richard tocar”, John Lennon contou depois. “Ele costumava ler a Bíblia nos bastidores, e só de ouvi-lo falar, nós sentávamos em torno para ouvir. Ainda o amo e ele é um dos melhores.”
Nos anos 1970, Little Richard vivia respeitosamente no circuito de veteranos do rock, imortalizado em uma performance abrasadora e suada no documentário Let the Good Times Roll, de 1973. Durante esse período, Richard também se tornou viciado em maconha e cocaína e, ao mesmo tempo, retornou às raízes gospel.
Little Richard também desmantelou estereótipos sexuais no rock & roll, mesmo que deixasse muitos de seus fãs confusos no processo. Durante a adolescência e no estrelato do rock, sua personalidade estereotipada e extravagante fez algumas especulações sobre a sexualidade dele, mesmo sem nunca se assumido publicamente. Mas essa extravagância não inviabilizou sua carreira. Na biografia de 1984, The Life and Times of Little Richard (escrito em conjunto com o artista), Richard denunciou a homossexualidade como “contagiosa… Não é algo com que você nasce”. (Onze anos depois, disse em entrevista à Penthouse que foi “gay durante toda a vida”.)
Mais tarde, se descreveu como “omnisexual”, com atração por homens e mulheres. Mas em uma entrevista com o grupo cristãos do Three Angels Broadcasting Group, em 2017, condenou o estilo de vida gay e transexual. “Deus, Jesus, Ele fez homens, homens, Ele fez mulheres, mulheres, entende? Você precisa viver como Deus quer. Muitas afeições não naturais. Muitas pessoas fazendo o que desejam sem pensar em Deus.”
No entanto, nada disso pareceu prejudicar a mística ou lenda. Nos anos 80, apareceu em filmes como Um Vagabundo na Alta Roda e em programas de TV como Três é Demais e Miami Vice. Em 1986, foi um dos 10 indicados originais para o Hall da Fama do Rock and Roll e, em 1993, recebeu o Lifetime Achievement Award no Grammy. A última gravação conhecida foi em 2010, quando gravou uma música para um álbum de homenagem à cantora gospel Dottie Rambo.
Nos anos anteriores à morte, Little Richard, em Nashville, na época, ainda se apresentava periodicamente. No palco, no entanto, a fisicalidade do passado desapareceu: graças à cirurgia de substituição da anca, em 2009, Richard só conseguia se sentar ao piano. Mas seu espírito rock and roll nunca o abandonou. “Sinto muito, mas não posso fazer isso como deveria ser feito”, disse a uma platéia em 2012. Depois que a platéia deu gritos de encorajamento, ele disse – com um gritinho de Little Richard – “Oh, você vai me fazer gritar como uma garota branca”!