Autismo na Barbearia

Em dias tão difíceis onde as pessoas pouco tem se preocupado com o bem estar do próximo, Mallas um barbeiro de quatro Barras, da aula de cidadania e inclusão.

Paciência, cuidado e carinho. Três palavras-chave que definem o trabalho humanizado e personalizado desenvolvido pelo barbeiro Carlos Henrique Camilo, conhecido como Mallas, para atender crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Aos 28 anos, ele tem uma barbearia em Quatro Barras, na Região Metropolitana de Curitiba, onde recebe clientes até mesmo de outros estados em busca do serviço.

O trabalho é reconhecido e sinônimo de gratidão para pais e responsáveis que levam crianças ao estúdio. É o caso da família de Artur, de três anos, diagnosticado com TEA no ano passado.

A mãe, Ariane Brito Camargo, conta que o filho nunca tinha deixado ninguém cortar o cabelo dele. Foi quando a família conheceu o trabalho do barbeiro.

“Agora é até um momento de diversão pra ele, fica feliz quando eu falo que vamos cortar o cabelo. O Mallas se tornou um amigo pro Artur, alguém que ele confia. Para mim, como mãe, ver essa entrega do profissional e a confiança só me traz um sentimento enorme de gratidão. Chega a emocionar.”

De acordo com o neurologista pediátrico Anderson Nistche, do Hospital Pequeno Príncipe, crianças com autismo têm alteração de processamento sensorial, o que torna o corte de cabelo muito difícil.

Por isso, para ele, o trabalho desenvolvido por Mallas é fundamental.

“Sensibilidade maravilhosa e faz um mundo melhor. […] Eu acho fantástico quando a sociedade começa a entender que existem formas muito simples de ajudar pessoas que têm uma forma diferente de ver o mundo. É fantástico o que esse barbeiro tem feito”, exalta.

O barbeiro relata que o trabalho personalizado começou depois do desafio de fazer um primeiro corte de cabelo de um cliente com autismo. Ele afirma que na época não tinha preparo. Então, passou a estudar como funciona o transtorno.

Todo atendimento é diferente. Nenhuma criança com autismo é igual à outra. Cada atendimento eu tenho que elaborar uma estratégia diferente, porque cada criança com autismo é única. Meu objetivo é ajudar as crianças, os pais, mas também que outros profissionais vejam e saibam que podem fazer”, afirma Mallas.

Pai de dois filhos, Mallas não cobra pelos atendimentos a crianças com autismo – e deixa isso informado no momento dos agendamentos. Mesmo assim, em muitos casos, famílias insistem em pagar como forma de reconhecimento e valorização do profissional.

De acordo com o barbeiro, o processo diferenciado começa ainda no agendamento pela internet.

Pais e responsáveis precisam preencher um formulário indicando características dos filhos – como brinquedos que gostam e até mesmo coisas que incomodam a criança. Tudo isso para que a barbearia seja cuidadosamente preparada para receber o cliente.

“Quando o pai responde que o filho gosta de um desenho específico, quando ele chegar na barbearia já vai estar tocando esse desenho, a música. Eu já deixo o ambiente preparado. Peço pros pais virem com 10 minutos de antecedência pra criança conhecer o ambiente. […] A hora que eu vejo que ela está no ambiente, eu vou analisando o que ela gosta de fazer”, explicou.

Segundo ele, o próximo passo é tentar ganhar a confiança da criança. Tudo com muita paciência e, principalmente, respeitando o espaço dela.

“Se o único brinquedo que ela pegou foi um carrinho verde, então interajo a partir dele com ela, mas sem invadir o espaço. De longe. Às vezes começo a brincar sozinho, chamando a atenção. Na maioria das vezes, as crianças vão começar a me rodear, olhar e daqui a pouco tenta interagir. […] Quando percebo que tenho a confiança, aí eu começo a brincar de jogar água em algum lugar, na minha mão e passo no meu cabelo, aí tento passar da minha mão no cabelo dela. Não dá pra jogar do borrifador a água direto na cabeça, a criança vai sentir cada pingo”, detalhou.

Diante da sensibilidade das crianças que atende ao barulho da máquina de cortar cabelo, por exemplo, muitas vezes Mallas liga o equipamento a uma distância considerável e, aos poucos, vai trazendo para perto.

Nem sempre o atendimento se restringe a um dia. Ele já chegou a passar seis horas com uma criança porque, segundo ele, a família vinha de um lugar distante e não tinha condição de retornar em outro momento.

Mas o profissional prefere, quando necessário, fazer o processo em etapas. Muitas vezes o corte de cabelo não sai em um dia e é dividido ao longo de semanas. O objetivo é não traumatizar e manter o bem-estar da criança em primeiro lugar.

“Eu falo para os pais para deixar, depois de uma hora e meia, para cortar um pouco mais na semana que vem. Porque estressa a criança, a gente precisa respeitar o timing. Se a pessoa puder ir com frequência também, não esperar muito. Uma semana, a cada 10 dias, durante uns dois meses, a criança vai ficar muito mais tranquila pra cortar”.

A trajetória para chegar a ter a barbearia própria não foi fácil. Há cerca de cinco anos, Mallas estava desempregado e morando de favor com a tia. Ela o aconselhou a procurar um curso profissionalizante.

A tia parcelaria o valor, e o jovem pagaria a ela o valor da mensalidade.

Ele chegou a pensar em informática, mas encontrou o curso de barbeiro e decidiu apostar. A partir daí, um novo desafio surgiu: o de conseguir dinheiro para custear a mensalidade.

“Tinha um rapaz perto de casa que vendia produto de limpeza, aí peguei e comecei a vender os produtos dele de porta em porta em bairros de Curitiba. Com esse dinheiro eu conseguia pagar a mensalidade. Fiz as primeiras aulas e não tinha material, o professor emprestava pra mim, e devagarzinho fui comprando. Alguém me dava um pente, um amigo dava uns R$ 20 para me ajudar. Até que postei na internet que estava procurando trabalhando e um cara me ligou“, contou.

À época morando em Colombo, também na Região Metropolitana, Mallas conseguiu uma entrevista de emprego em Campina Grande do Sul.

Sem dinheiro, pegou da avó R$ 10 emprestados para o transporte – mas perdeu o valor e no terminal do Guadalupe, em Curitiba, começou a pedir ajuda para as pessoas. Segundo ele, foi ignorado.

“Eu olhei pro braço e lembrei do relógio que minha tia tinha me dado, fazia uns 3 anos. Tirei do braço e comecei a oferecer para as pessoas falando: ‘Olha, tô vendendo relógio porque perdi dinheiro da passagem e vou fazer entrevista de emprego”, relembrou.

Até equipamentos como pente e maquininha de cortar cabelo ele mostrou na tentativa de provar o uso do valor, mas continuou sendo ignorado. Ele caminhou até um posto de combustíveis e ofereceu o relógio.

A mulher do caixa ofereceu R$ 5 pelo objeto. Apesar do baixo valor, em busca de uma oportunidade, Mallas aceitou vender o presente que ganhou da tia para poder chegar à entrevista de emprego.

Foram alguns meses limpando chão, banheiro e aproveitando o tempo para observar como eram feitos os cortes de cabelo, como trabalhavam no caixa e no atendimento. Até que ele conseguiu abriu o próprio negócio.

Hoje, a barbearia atende o público masculino, de onde vem a renda da família, e consegue prestar o serviço gratuito às crianças com autismo.

De acordo com o neurologista pediátrico, a sensibilidade de crianças com TEA faz com que elas prestem atenção ao que está em segundo plano, diferente do que acontece com pessoas fora do espectro.

“Quando gente está sentado numa cadeira, a gente não fica sentindo isso, mas o cérebro com TEA fica antenado naquilo que está em segundo plano com muito mais intensidade. O barulhinho da tesoura cortando o cabelo dá uma aflição muito ruim, negativa para ele. Como barulho da moto, aspirador de pó, liquidificador”, explicou.

Segundo Nistche, não há tratamento, mas sim estruturas terapêuticas que auxiliam o cérebro com autismo a perceber o mundo e a se relacionar diferente.

“Parte do tratamento é tratar essas alterações sensoriais, e isso é muito parecido com o que o barbeiro faz. Crianças que têm dificuldade com ruído, num ambiente agradável, é colocado aquele ruído aos pouquinhos, para ir se acostumando. Alimentos, texturas que não gosta, são apresentadas e estimuladas pra que aos poucos não se sinta tão desagradável”, afirmou.

No caso do Artur, a adaptação fez e ainda faz parte do processo de corte de cabelo. Mas, segundo a mãe, a técnica já é um sucesso.

“Os cortes duravam em torno de 1 hora ou mais, hoje já é muito mais rápido. Ele já entende e fica direitinho na cadeira. Recentemente conseguimos que ele deixasse colocar a capa, coisa que ele nunca havia deixado colocar”, contou Ariane.

Ao g1, o barbeiro contou que está programando cursos online para famílias com crianças diagnosticadas com TEA e também profissionais.

No caso de pais e responsáveis, a ideia é ajudar eles a conseguir preparar os pequenos para cortes de cabelo ou até mesmo a fazer o processo em casa.

Para outros barbeiros, o objetivo é repassar formas de atendimento que possam ajudar e melhorar a recepção no local de trabalho. Tudo para ampliar a rede de acolhimento.

“A intenção é ajudar a disseminar isso. Porque pense, têm clientes que vêm de São Paulo para cá cortar comigo. É muito legal o reconhecimento, mas quantas barbearias e barbeiros eles passaram no caminho para chegar aqui. Se a gente conseguir fazer um trabalho que mais profissionais se capacitem, não precisa a pessoa viajar, porque ela vai ter profissionais por perto”, completou.

( Fonte: G1)